Nos EUA, Europa e em especial no Sul Global, preveem-se desemprego, pobreza e quebra de empresas nunca vistos, ao menos em 90 anos. Em meio ao caos, uma ínfima oligarquia continua lucrando. De onde vêm seus ganhos?
OUTRASPALAVRASMERCADO X DEMOCRACIA
por Michael Roberts
Por Michael Roberts, em The Next Recession| Tradução: Eleutério Prado
Notícia da “Folha de S. Paulo”, em 6 de junho, menciona o surgimento de um surto de esperança sobre uma rápida retomada da economia global após a divulgação dos dados de emprego da economia norte-americana: “uma onda de otimismo levou o dólar para abaixo” em vários países do mundo. Ao mesmo tempo se observou que as bolsas entraram num processo de recuperação: “a mudança de perspectiva levou a bolsa de tecnologia, Nasdaq, em Nova York, a bater sua máxima histórica, com 9.845 pontos”.
E esse efeito se espalhou no mundo, inclusive no país que mais se descuidou no combate ao novo coronavírus. Eis que, no caso do Brasil, os dois gráficos abaixo mostram que, efetivamente, o mercado de ações, que havia caído em março, recuperou boa parte do valor das cotações em junho. Ademais, o dólar que havia chegado a quase R$ 6,00 voltou a ficar abaixo de R$ 5,00, aliviando as pressões sobre o Banco Central.
O artigo abaixo, colhido no blog The next recession, mantido por Michael Roberts, mostra bem que a economia mundial, e em particular a economia norte-americana, não vai voltar ao “normal” rapidamente como imaginam os torcedores do time do curto-prazo e das formas aparentes do capitalismo. Eis que a longa depressão iniciada em 1997 – e continuada desde então – não vai terminar tão cedo. E que, em consequência, a excitação observada é apenas mais uma masturbação do capitalismo contemporâneo que sonha com os seus anos dourados, mas tem de se contentar com a solidão dos introvertidos. [Eleutério Prado]
A recente divulgação dos dados de empregos nos EUA, em maio, provocou uma alta acentuada no mercado de ações dos EUA [N.T.: tal como no Brasil e em outras partes do mundo]. Eis que mostraram uma redução na taxa de desemprego a partir de abril. Ao acompanhar o que está ocorrendo nos mercados de ações das principais economias, é possível pensar que a economia mundial está voltando ao normal, já que os bloqueios impostos pela maioria dos governos para combater a propagação da pandemia do COVID-19 estão sendo relaxados ou até mesmo suspensos.
As bolsas de valores do mundo, depois de caírem precipitadamente quando começaram os bloqueios, voltaram aos níveis recordes anteriores nos últimos dois meses. Esse retorno foi impulsionado, primeiro, pelas injeções gigantescas de dinheiro e de crédito no sistema financeiro, feitas pelos principais bancos centrais. Isso permitiu que bancos e empresas emprestassem a taxas zeradas ou negativas, com garantia do retorno do crédito pelo Estado, sem risco portanto de perda por inadimplência. Ao mesmo tempo, os governos dos EUA, Reino Unido e Europa criaram resgates diretos para grandes empresas afetadas pelos bloqueios de movimentação de pessoas, como as companhias aéreas, os fabricantes de automóveis e aeronaves, as empresas de lazer etc.
É uma característica do século XXI que os bancos centrais tenham se tornado o principal mecanismo de apoio ao sistema financeiro. Dão sustentação à alavancagem dos bancos, que tinha crescido durante o período da “grande moderação” – fenômeno detalhado no meu livro, The Long Depression. Essa ação combateu a baixa lucratividade nos setores produtivos, ou seja, naqueles que criam valor na economia capitalista mundial. Pois, as empresas transformaram cada vez mais fundos em ativos financeiros. Os investidores tomaram empréstimos com taxas de juros muito baixas para comprar e vender ações e títulos e, assim, obter ganhos de capital. As maiores empresas passaram a comprar as suas próprias ações para aumentar imoderadamente os seus preços. De fato, o que Marx chamou de “capital fictício” aumentou em “valor”, enquanto o valor efetivo estagnou ou caiu.
Entre 1992 e 2007, as injeções monetárias dos bancos centrais (denominadas usualmente como base monetária ou “power money”) dobraram como parcela do PIB global de 3,7% da liquidez total (a soma do dinheiro e do crédito em suas diferentes formas) para 7,2%, em 2007. Ao mesmo tempo, os empréstimos e as dívidas bancárias quase triplicaram como parcela do mesmo PIB. De 2007 a 2019, o dinheiro (base monetária) dobrou novamente, em porcentagem, como parte da “pirâmide de liquidez”. É assim que os bancos centrais têm impulsionado o boom do mercado de ações e de títulos.
Quando a covid-19 chegou, ocorreu um fechamento global que congelou fortemente a atividade econômica. Em resposta, os balanços dos bancos centrais do G4 cresceram novamente, agora em torno de 3 trilhões de dólares (cerca de 3,5% do PIB mundial). Sabe-se que essa taxa de crescimento provavelmente persistirá até o final do ano, pois vários pacotes de liquidez e de empréstimos continuarão a ser ampliados. Portanto, o dinheiro na forma de “power money” dobrará novamente até o final deste ano. Essa ação levará o montante global dessa forma de liquidez a 19,7 trilhões de dólares, ou seja, a quase um quarto do PIB nominal mundial. Como parte da liquidez total, essa forma de dinheiro (base monetária) chegará a ser três vezes maior em comparação com o nível de 2007.
Não é de se admirar, portanto, que os mercados de ações estejam se expandindo. Mas esse mundo de fantasia das finanças tem cada vez menos relação com a produção de valor efetivo na acumulação capitalista. Enquanto o mercado de ações dos EUA tende a voltar aos níveis anteriores, os lucros das empresas durante o bloqueio pandêmico estão sofrendo uma queda ainda mais acentuada do que aquele da Grande Recessão de 2008-9. A diferença entre fantasia e realidade é ainda maior do que era no final dos anos 90, pouco antes do colapso do dot.com. Naquele momento, as avaliações de ações despencaram em 50%, transformando assim parte de seus valores fictícios num nada real.
Mas há outra razão pela qual os mercados financeiros estão prosperando; trata-se de uma crença otimista que está sendo promovida pelos governos de que o desastre da covid-19 em breve terminará. O argumento é que este ano será terrível para o PIB, o emprego, a renda e o investimento na economia “real”; porém, tudo deve voltar em 2021, quando os bloqueios terminarem e surgir uma vacina milagrosa. Após o desastre haverá, pois, para os otimistas de plantão, uma rápida “volta ao normal”. Os especuladores estão, agora, tentando pular sobre o abismo da pandemia, de um lado para o outro, supondo que as coisas possam voltar à dinâmica anterior.
Nos EUA, a criação de empregos mostrou uma recuperação acentuada em maio. À medida que os bloqueios começaram a terminar ou a relaxar, parece que muitos norte-americanos estão voltando ao trabalho nos setores de lazer e varejo, depois de terem recebido licenças por dois meses. O mercado de ações adorou isso, assumindo que uma recuperação numa forma de V está acontecendo. Mas a taxa de desemprego nos EUA ainda era 13,3%, ou seja, mais de um terço mais alta do que nas profundezas da Grande Recessão. E se você incluir aqueles que desejam trabalho em período integral, mas não o conseguem, a taxa de desemprego chega a 21%. Com a adição de mais 3 milhões de pessoas que não foram classificadas, a taxa total de desemprego em maio atinge a marca de 25% aproximadamente. Além disso, a taxa de desemprego dos negros aumentou substancialmente.
O retorno ao trabalho de uma parte dos funcionários de varejo e lazer é algo efetivamente esperado. A questão é saber se é possível recuperar o crescimento do PIB e do investimento aos níveis anteriores (que já eram relativamente fracos), de tal modo a elevar o nível de emprego num curto espaço de tempo. A maioria dos analistas pensa que não. De fato, enquanto os mercados de ações voltam para os picos anteriores, impulsionados pela esperança de uma recuperação em forma de V, a maioria das previsões econômicas tradicionais preveem que um desastre de grandes proporções, um retorno prolongado lento, havendo mesmo aqueles que não acreditam num retorno às tendências anteriores.
Como tenho argumentado em postagens anteriores, a economia capitalista mundial não estava avançando a passos largos antes da pandemia. De fato, na maioria das grandes economias e nas chamadas economias emergentes maiores, o crescimento e o investimento já haviam desacelerado, enquanto os lucros das empresas haviam parado de crescer. A rentabilidade do capital nas principais economias estava num dos pontos mais baixos de todo o pós-guerra, apesar dos mega-lucros obtidos pelas chamadas FAANGS (Facebook, Amazon, Apple, Netflix e Google), ou seja, pelas empresas gigantes da mídia tecnológica.
O Escritório de Orçamento do Congresso dos EUA (CBO) revisou drasticamente as previsões para o PIB dos EUA. Agora, ele espera que o PIB nominal dos EUA caia 14,2% no primeiro semestre de 2020, em relação à tendência prevista para janeiro, antes da pandemia da covid-19. Espera, também, que as várias injeções fiscais e monetárias das autoridades, assim como o fim dos bloqueios, reduzam essa perda do valor de janeiro para 9,4%, até o final de 2020.
O CBO espera uma espécie de recuperação em forma de V no PIB dos EUA, para 2021, mas não espera que a tendência de crescimento econômico, prevista antes da pandemia (já reduzida devido à Longa Depressão, iniciada em 2009), seja alcançada antes de 2029. Ademais, talvez nem volte à previsão de crescimento da tendência anterior antes de 2030! Portanto, haverá uma perda permanente de 5,3% no PIB nominal em comparação com as previsões anteriores à pandemia, ou seja, 16 trilhões de dólares serão desperdiçados para sempre. Em termos de PIB real, essa perda m0ntará cerca de 3% cumulativamente, ou seja, 8 trilhões de dólares em valores de 2019.
Há uma previsão semelhante para a Europa. Depois que o PIB real da área do euro registrou um declínio recorde de 3,8% no primeiro trimestre de 2020, o Banco Central Europeu (BCE) prevê um novo declínio de 13% no segundo trimestre. Assumindo que os bloqueios pandêmicos terminem e que as medidas fiscais e monetárias sejam eficazes para ajudar a economia da zona do euro, o BCE calcula que o PIB real ainda cairá 8,7% em 2020 e depois se recuperará 5,2% em 2021 e 3,3 % em 2022. Mas o PIB real ainda estaria em torno de 4% abaixo do nível originalmente esperado antes da pandemia. O desemprego ainda estará 20% acima da previsão anterior à pandemia. E esse é o “cenário ameno”. Em um cenário mais grave, em que haveria uma segunda onda de infecção pelo novo coronavírus e outras restrições, o BCE prevê que a zona do euro ainda estará 9% abaixo do nível previamente esperado para 2022. Ou seja, ele não espera um retorno “normal” num futuro previsível.
Fora da zona do euro, a economia do Reino Unido, que já está bem fraca, dificilmente obterá um retorno em forma de V. Historicamente, tem havido um baixo crescimento no pais, após as recessões – ou seja, elas têm deixado “cicatrizes” permanentes. Há ainda menos razões agora para supor que tudo será diferente. Os indicadores da atividade econômica global mostram que os níveis permaneceram severamente deprimidos em maio, abaixo aqueles do final da crise de 2008-9.
Quanto às “economias emergentes”, o quadro é ainda mais sombrio. Ao se acreditar na previsão principal do Instituto de Finanças Internacionais (IIF), haverá uma queda de -10%, em 2020. O PIB da Argentina este ano voltará ao nível de 2007. Para o Brasil, a previsão é que haja uma queda de -7%, em 2020, o que deve levar a economia de volta ao nível de 2010; são mais dez anos de modestos ganhos no PIB que vão embora. Com uma queda de -9%, o México retorna ao nível de 2013. Tem-se, portanto, uma “década perdida” antes mesmo de considerar os efeitos da desvalorização da moeda. O Brasil e a Argentina poderão ter, possivelmente, no final do ano de 2020, níveis de PIB real semelhantes aos que obtiveram 30 anos atrás.
Ainda mais importante como um guia para saber se de fato as principais economias capitalistas vão “voltar ao normal” – tal como supõe com júbilo os investidores do mercado de ações dos EUA – é o nível de lucratividade do capital. Os valores dos lucros corporativos nos EUA, no primeiro trimestre de 2020, mostraram a direção para o futuro. Os lucros das empresas norte-americanas caíram em um ritmo anual de 13,9% e ficaram 8,5% abaixo do primeiro trimestre do ano passado. Os principais setores produtivos (não financeiros) viram os lucros caírem em 170 bilhões de dólares no trimestre, de modo que não houve aumento nos lucros em relação ao primeiro trimestre de 2019 – e isso sem levar em consideração a inflação. De fato, os lucros do setor não financeiro dos EUA caíram ou mais, ou menos nos últimos cinco anos. O ano de 2020, portanto, só aumentará os problemas do setor corporativo. É difícil pensar que ele sairá do isolamento associado à pandemia com os mesmos níveis anteriores de investimento.
Ao se observar a taxa lucratividade das economias do G7, supondo que um fraco retorno ao normal aconteça, vê-se que se trata de mais um passo para baixo na longa depressão que as principais economias imperialistas (Estados Unidos, Alemanha, Japão, Reino Unido, Canada, França, Itália) estão experimentando desde 1997. Um gráfico que mostra a rentabilidade do capital no conjunto das economias do G7 se segue:
A fonte desse gráfico são os dados fornecidos pelas Tabelas 9.1 da Penn World (IRR). Essa fonte fornece a taxa interna de retorno calculada com base em série de estoques de capital líquidos. A lucratividade média ponderada no G7 foi calculada com base nos valores do PIB para as sete principais economias capitalistas mais avançadas.
Nesse gráfico, é interessante observar que a rentabilidade do capital realmente atingiu um pico em 1997. Nnas duas décadas inteiras do século XXI, ocorreu uma queda tendencial da lucratividade (a qual foi intercalada, como sempre acontece, com breves reviravoltas. (A estimativa da IRR com base na Penn World, que termina em 2017, foi estendida até 2021, usando as estimativas da base de dados da AMECO (que são calculadas de maneira semelhante). Fazendo isso, a rentabilidade do capital no G7 provavelmente mergulhará para um nível mais baixo de todos os tempos em 2020, mesmo que ocorra uma recuperação moderada em 2021.
Os mercados financeiros podem estar esperando um retorno rápido (e os investidores que estão seguindo essa previsão poderão obter lucros enormes, mas eles serão provavelmente momentâneos). Pois a dura realidade é que o boom do mercado financeiro está flutuando num oceano de crédito barato fornecido pelo financiamento monetário dos Estados nacionais e de seus bancos centrais. Esse crédito não está entrando da atividade econômica produtora de valor. E é precisamente isto o que mostra a velocidade da moeda (ou seja, a velocidade das transações monetárias com mercadorias). O boom do capital fictício, alimentado por crédito, não gerou um crescimento mais rápido no valor gerado efetivamente ou na lucratividade real do capital. Está apenas empurrando uma corda.
A dívida cresceu muito mais rapidamente do que qualquer aumento de valor. De fato, a produtividade do endividamento, ou seja, a sua capacidade de elevar os níveis de produção, ficou agora negativa. Ou seja, o aumento do endividamento é consistente com uma redução do crescimento do PIB.
Manter o mercado de ativos em alta é uma coisa; levar 35 milhões de norte-americanos de volta ao trabalho é outra coisa, principalmente quando a maioria teria de ser empregada por empresas que não desfrutam dos benefícios daquelas que se encontram no S&P 500 – o índice das ações principais de Wall Street. Ademais, a grande maioria das empresas está muito longe de ter as condições financeiras das gigantes de tecnologia, as quais dão sustentação importante aos índices de preços das ações.
A realidade é que o impacto da pandemia apenas reforçou as tendências existentes. Eis que a economia capitalista já se apresentava em uma trajetória de crescimento descendente e de baixa elevação da produtividade do trabalho. O aumento da dívida, facilitado pelo crescimento da base monetária, se constituirá em mais um obstáculo ao crescimento. Apesar do otimismo dos mercados financeiros, um retorno ao normal se mostra bem fugidio no horizonte de hoje.
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