Aquele que lê a obra “1984” de George Orwell e a interpreta de modo autoindulgente, como sendo somente uma referência ao stalinismo soviético ou nazifascismo, perdeu o mais importante: a advertência que se refere a nós.
As profecias concebidas no livro “1984”, na fictícia Oceânia, são um poderoso alerta para as táticas de controle ideológico e psicológico sobre o indivíduo, que nem sequer tem consciência disso, dessa forma muito mais efetivos e duradouros do que a violência coercitiva.
Em “1984”, Orwell decifra essas táticas em quatro categorias: a destruição da verdade; o “Duplipensar”; a “Novilíngua” e a criação do inimigo.
Em “1984”, o trabalho do protagonista Winston Smith era falsificar a história e reescrever o passado no “Ministério da Verdade”, de acordo com os interesses do Partido, representado na figura do “Grande Irmão”.
Um dos aspectos mais marcantes da obra 1984 é que Winston está preso entre um passado nebuloso, esparsamente reconstruído pela sua memória e um presente que controla e reescreve o próprio passado e, portanto, contradiz o passado de sua memória. Winston encontra como única base de dados históricos um conjunto de inverdades, algumas das quais ele mesmo ajudou a fabricar. O único registro da veracidade dos fatos estava em sua memória.
Para evitar esse inconveniente chamado “memória” recente, o Partido instituiu um dispositivo complementar a reconstrução do passado, o “controle da realidade” ou “Duplipensar”. Por meio desse condicionamento mental, o “Duplipensar”, seria possível aceitar duas crenças que se contradizem ao mesmo tempo.
O “Duplipensar” era construído em cima da “Novilíngua”, idioma oficial do Partido, que estava aos poucos substituindo a língua inglesa e fora concebido para uniformizar o pensamento e inviabilizar outras formas de pensamento. A “Novilíngua” consistia na redução maniqueísta e binária da linguagem, em que a relação entre signo, significante e significado eram completamente subvertidos.
E na Oceânia, chamada Brasil, o presidente da República, Jair Bolsonaro, em vídeo de reunião ministerial, recentemente divulgado na imprensa, disse que “a gente está perdendo a luta por liberdade” e “quem não aceitar a minha, as minhas bandeiras, Damares, Deus, Brasil, armamento, liberdade de expressão, livre mercado. Quem não aceitar isso está no governo errado. Que os caras querem é a nossa hemorroida! É a nossa liberdade! Isso é uma verdade”. E o seu ministro da Educação também disse na mesma reunião que quer acabar com essa “porcaria que é Brasília”, lugar que ele diz ser “um cancro de corrupção, de privilégio”.
O líder autoritário Jair Bolsonaro é um exemplo claro do uso – consciente ou não – das táticas de controle mental da “Novilíngua” e “Duplipensar”. O presidente Bolsonaro é defensor da ditadura e da tortura e ao mesmo tempo da “liberdade”. É como se o lema do Partido da Oceânia, “liberdade é escravidão, guerra é paz, ignorância é força” ganhasse nova forma: “Ditadura é liberdade”.
A partir daí, o sentido das palavras é subvertido e a ditadura pode ser representada como boa e libertária. A partir daí, o passado é reescrito, o presente esvaziado de significado, e a verdade como julgamento objetivo da realidade é abolida.
Ao se destruir a verdade objetivamente válida como parâmetro de julgamento do presente, destrói-se o mecanismo de autodedesa do indivíduo. Destrói-se a base de sobrevivência de um povo. E tudo que representa uma ditadura perde materialidade histórica.
Além disso, Jair Bolsonaro fala do seu cargo de presidente da república e como agente público não tem liberdade nem vontade pessoal. Enquanto ao particular é lícito fazer tudo o que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza.
É como diz Lacordaire, “Entre os fortes e fracos, entre ricos e pobres, entre senhor e servo é a liberdade que oprime e a lei que liberta”.
Em um exemplo claro de duplipensar orwelliano, o presidente Bolsonaro colocou na mesma frase “Deus”, “armamento” e “liberdade de expressão” e que “povo armado jamais será escravizado”. Na Oceânia chamada Brasil, evangélicos fazem “arminha” com uma mão e seguram a bíblia com a outra, Jesus se torna armamentista e defensor da pena de morte e da tortura, e arma liberta.
O ministro da educação de Bolsonaro chama a política de “um cancro de corrupção e privilégio”. A política da antipolítica é a antesala da ditadura evocando o retorno de fenômenos pré-modernos como o messianismo e o autoritarismo redentor. No livro 1984, existe o chamado “dois minutos de ódio”, onde a massa se reunia sob a regência fálica do Grande Irmão para vaiar e execrar o inimigo exibido em uma enorme “teletela”. Já na Oceânia chamada Brasil, o inimigo é a “política” e a salvação é o Jair “Messias” Bolsonaro.
Enfim, George Orwell em 1984 nos oferece um completo método de autodefesa contra o fascismo expondo as táticas de controle mental sobre os indivíduos que destroem a capacidade individual de resistência.
Seja na Oceânia chamada Brasil, seja na Oceânia de Orwell, o vídeo da reunião de Bolsonaro, através da “Novilíngua” e do “Duplipensar”, será publicamente aceitável. O ativismo do Supremo Tribunal Federal com o objetivo de jogar a opinião pública contra o Presidente da República terá efeito contrário. E de acordo com a Folha de São Paulo, o Mercado – O Deus que Bolsonaro realmente se curva – reagiu positivamente após a divulgação de vídeo da reunião ministerial.
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