Eis o sistema que é preciso destruir

Como os bancos centrais inundam de dinheiro o cassino financeiro global. A moeda do mundo, criada do nada, em favor do 0,1%. O papel dos EUA. A ascensão subversiva da China. Uma estudiosa do “novo” capitalismo conta tudo

Mercado x Democracia
por Ann Pettifor



Por Ann Pettifor | Tradução de Simone Paz

Greenback, greenback, dollar bill 
Just a little piece of paper, coated with chlorophyll
Ray Charles
“Nota de dólar, nota de dólar verde
Apenas um pedacinho de papel, revestido com clorofila ”)

Conhecemos a história porque Henry Paulson, que já foi executivo-chefe da Goldman Sachs e, também, secretário do Tesouro dos EUA durante a última crise, está reunindo os capitalistas do mundo para defender a globalização contra o reshoring, o protecionismo e os controles de imigração. Paulson entende isso como uma guerra de ideias. Nas colunas do Financial Times, defendeu que “a iminente batalha colocará as forças de abertura — enraizadas nos princípios de mercado — contra as de fechamento, em quatro dimensões: comércio, fluxos de capital, inovação e instituições globais”

Essa “batalha iminente” já se inclina a favor da classe dos credores do mundo — com o apoio dos bancos centrais e, em particular, o dos EUA, o Federal Reserve, que emprega sua arma mais potente: o dólar americano, aquele “pedacinho de papel revestido com clorofila”. Suas ações deixam claro que pode não haver um comitê internacional para salvar as pessoas de uma pandemia global, mas existe um comitê internacional criando uma “grande rede de segurança” para salvar as finanças privadas, por causa da pandemia. Os dirigentes dos bancos centrais engajaram-se em uma ação decisiva, expansiva e coordenada internacionalmente para salvar o capitalismo rentista, enquanto os governos de presidentes como Trump, Bolsonaro, Modi e Johnson divertem-se, lidando da pior maneira com a crise da covid-19.

A ascensão do nacionalismo e do protecionismo, que levou esses líderes autoritários ao poder, juntamente com ações extraordinárias dos bancos centrais em apoio aos cassinos financeiros de Wall Street e da City [centro financeiro de Londres], são reações e consequências de “externalidades negativas” típicas da globalização: conectividade e integração. A pandemia não deixa de ser também uma consequência dos riscos sistêmicos à saúde, inerentes à conectividade e à integração do projeto de globalização

Onde ficam os progressistas nesse debate de ideias que envolve globalização e políticas monetárias? A julgar pelo tom e nível do debate público ocidental, a esquerda se mantém à margem da arena de batalha entre os pró-globalização e os contrários a ela. Tanto a campanha eleitoral liderada por Jeremy Corbyn, quanto a candidatura presidencial de Bernie Sanders nos Estados Unidos, ofereceram uma análise sólida, além de uma profunda compaixão e solidariedade às vítimas da globalização e do colapso climático. Mas suas campanhas costumavam focar, com frequência, em questões domésticas — tais como sistemas de saúde, moradia acessível, a nacionalização das ferrovias, a atenção para os pobres e sem-teto — e ignoraram tanto a infraestrutura financeira globalizada (que torna praticamente impossível a reforma desses setores), como o establishment político que lutará até a morte para defender o sistema.

Essa ignorância sobre os elementos nocivos do sistema monetário internacional e seus impactos no Sul Global abafa o debate e inibe possibilidades radicais. Afinal de contas, não é possível transformar um sistema e redesenhar sua arquitetura financeira internacional, enquanto esse sistema não for compreendido, discutido e debatido

Em outras palavras, para decidir nosso rumo, precisamos entender como chegamos até aqui.

Como chegamos até aqui

Diferentemente da recente experiência com a crise internacional, o trauma da Grande Depressão e da Segunda Guerra Mundial levou a intenso debate público sobre o sistema financeiro internacional. John Maynard Keynes era colaborador regular da imprensa popular, inclusive do Daily Mail — de direita –, e envolvia o público com frequentes transmissões de rádio sobre políticas macroeconômicas. O presidente dos EUA, Franklin Roosevelt, fazia o mesmo

O Acordo de Bretton Woods de 1944 foi parte do resultado desses debates e levou à construção de uma arquitetura financeira internacional projetada para gerenciar e estabilizar os desequilíbrios no comércio e nas finanças que perturbaram o sistema mundial — e tinham aumentado as tensões políticas, levando a uma guerra catastrófica. O planejamento ajudou a gerenciar os desequilíbrios comerciais no mundo todo por quase trinta anos. Assegurou que moedas nacionais fossem vinculadas a um ativo de valor fixo. Isso impediu a especulação cambial e garantiu que a moeda de cada país refletisse os pontos fortes e as necessidades da economia doméstica, não os interesses dos mercados de capitais na economia internacional

Entretanto, logo surgiram tensões e deformações. Já em 1963, Robert McNamara advertia que os gastos militares norte-americanos no exterior haviam se tornado tão grandes que ameaçavam o que ele chamava de “cobertura de ouro” do dólar dos EUA. Em seu estudo magistral da estratégia econômica do império americano, Michael Hudson relata que, em maio de 1970, o secretário do Tesouro dos EUA, David Kennedy, alertou que se países estrangeiros não viabilizassem o aumento das exportações dos Estados Unidos, o Congresso poderia restringir as importações. Hudson escreve que, “basicamente, ele queria dizer que, à medida em que o capital privado dos EUA continuasse a comprar as indústrias e empresas da Europa e da Ásia, estabelecendo um déficit americano na balança de pagamentos por conta de capital, os países que acabavam tendo um superávit, ao receber esses dólares de forma forçada, deveriam aumentar suas importações dos Estados Unidos em quantidades equivalentes ao custo dos EUA para assumir o controle de seus setores e empresas.

Richard Nixon, o presidente norte-americano à época, tendo seu objetivo frustrado por causa de aliados obstinados como o presidente De Gaulle, desmantelou unilateralmente e sem consultar ninguém, o Sistema de Bretton Woods, suspendendo toda a venda adicional de ouro dos EUA a bancos centrais estrangeiros. A partir de então, os US$ 61 bilhões em dívidas líquidas devidas aos estrangeiros seriam pagos apenas na forma de “uma nota de dólar verde, um pedacinho de papel coberto de clorofila”. Com os pagamentos em ouro suspensos, a dívida externa dos Estados Unidos foi, de fato, repudiada. Embora nunca lembrada por economistas e historiadores dessa forma, a ação de Nixon, conhecida como “o choque Nixon”, levou, na época, ao calote de dívida da história

A partir de então, as moedas estrangeiras não seriam mais conversíveis em um ativo seguro de valor fixo, mas em dólares americanos de papel. E, em vez de ouro, a dívida de curto prazo dos EUA (letras do Tesouro), no futuro, seria mantida entre as reservas monetárias dos bancos centrais estrangeiros. Ou seja, as obrigações da dívida de curto prazo do governo dos Estados Unidos assumiram o lugar do ouro, e se tornanaram a reserva monetária oficial mundial.

Mas Nixon ainda tinha mais coisas a fazer para consolidar os EUA como o poder hegemônico global.

A desacoplagem do dólar em relação ao ouro em 1971 levou, como se esperava, a uma queda no valor do dólar. Agora, as receitas obtidas pelos países produtores de petróleo compravam menos nos mercados internacionais. Para aumentar o desespero dos produtores de petróleo do Oriente Médio, os EUA apoiaram Israel na guerra árabe-israelense de 1973. Em resposta, o cartel de petróleo (OPEP) aumentou drasticamente o preço do petróleo. Os enormes ganhos das vendas de petróleo do Oriente Médio inundaram bancos e instituições financeiras ocidentais, que relataram taxas médias líquidas de crescimento anual de depósitos entre 25 e 30%. A alta dos preços do petróleo, combinadoa com a desregulamentação financeira pós-Bretton Woods, desencadeou a inflação em todo o mundo.

E assim, William Simon, recém-nomeado secretário do Tesouro dos EUA, e seu vice, Gerry Parsky, foram encarregados pelo presidente Nixon e por Henry Kissinger de negociar um acordo com os sauditas. O objetivo era claro: persuadir o rei Saudita a investir os retornos de seus campos de petróleo na dívida americana. O rei saudita, Faisal bin Abdulaziz Al Saud, exigiu apenas uma condição em troca: seu financiamento do déficit americano, deveria permanecer “em estrito segredo”, de acordo com um cabo diplomático obtido pela Bloomberg no banco de dados do National Archives

O segredo saudita foi mantido por mais de quatro décadas, e o arranjo fez do Reino Saudita um dos maiores credores estrangeiros dos EUA. Ele provou ser uma arma diplomática útil — e explica a relutância do governo dos EUA em investigar o assassinato brutal de um jornalista do Washington Post, dissidente da Arábia Saudita, Jamal Khashoggi em 2018. Em abril de 2016, a Arábia Saudita ameaçou vender até $ 750 bilhões de dólares em tesouraria e outros ativos, se o Congresso aprovasse uma lei que permitisse ao reino ser responsabilizado nos tribunais dos EUA pelos ataques terroristas de 11 de setembro, segundo o New York Times.

The Saudis secret was kept for more than four decades, and the arrangement made the Saudi Kingdom one of America’s largest foreign creditors. It has proved a useful diplomatic weapon, and it helps explain the US government’s reluctance to investigate the brutal assassination of a Washington Post journalist and Saudi dissident, Jamal Khashoggi in 2018. In April 2016, Saudi Arabia warned it would start selling as much as $750 billion in Treasuries and other assets if Congress passeda bill allowing the kingdom to be held liable in US courts for the Sept. 11 terrorist attacks, according to the New York Times.

A dolarização dos combustíveis fósseis transformou o sistema internacional e levou à criação do petrodólar — a “chave para o funcionamento do dinheiro neocolonial”, como argumentou Andres Arauz, ex-ministro equatoriano e conselheiro da Progressive International.

The dollarization of fossil fuels transformed the international system, and led to the creation of the petrodollar — the “key to the functioning of neo-colonial money,” as former Ecuadorian minister and Progressive International advisor Andres Arauz has argued.

O “Choque Nixon” e o petrodólar foram cruciais para a criação e manutenção da hegemonia global. Ambos contribuíram para a desregulamentação, conectividade e integração que financiaram e carbonizaram a economia global. Nesse sentido, as crises econômicas, ecológicas e de saúde de hoje são, em grande parte, uma consequência das decisões geopolíticas tomadas em 1971.

The ‘Nixon Shock’ and the petrodollar were central to the creation and maintenance of the global hegemon. Both contributed to the deregulation, connectivity and integration that financialised and carbonised the global economy. In that sense today’s economic, ecological and health crises are, in large part, a consequence of geopolitical decisions taken back in 1971.

Qual o sistema monetário internacional atual?

What is the current international monetary system?

Se o sistema monetário internacional de hoje é resultado das decisões do governo dos EUA, ele trabalha com efetividade na proteção dos interesses da classe rentista globalizada — assim como o padrão-ouro do século XIX e início do século XX protegia os interesses globais desde a cidade de Londres.

If today’s international monetary system is the outcome of US government decisions, it works effectively to protect the interests of the globalised rentier class — just as the gold standard of the nineteenth and early twentieth century protected global interests based in the City of London.

No cume do sistema, está o Federal Reserve: emissor da moeda de reserva mundial. O dólar dos EUA é o feixe central de suporte de carga da arquitetura monetária internacional.

At the apex of the system stands the Federal Reserve: issuer of the world’s reserve currency. The US dollar is the central, load-bearing beam of the international monetary architecture.

Como tal, o Fed é agora a única fonte de liquidez global, fornecendo dólares (por meio de ‘linhas de swap’) não apenas para todos os bancos e credores do mundo, mas também para alguns poucos Bancos Centrais do mundo. Os excluídos desta generosidade imperiosa incluem a maioria dos países de baixa renda, mas também a China.

As such, the Fed is now the sole source of global liquidity, providing dollars (via ‘swap lines’) not only to every bank and creditor in the world, but also to a chosen few of the world’s central banks. Those excluded from this imperious largesse include most low-income countries, but also China.

Apesar de seu mandato oficial, a missão do Fed, atualmente, não é a segurança e a prosperidade da economia doméstica da qual seus governadores dependem para governar e da qual derivam seu mandato. Em vez disso, o Fed é, na verdade, uma instituição com apoio público cujas operações são conduzidas por autoridades privadas, quase completamente isoladas da supervisão democrática ou da prestação de contas.

Despite its official mandate, the Fed’s mission in these times is not the security and prosperity of the domestic economy over which its governors preside, and from which they derive their mandate. Instead, the Fed is effectively a publicly backed institution whose operations are driven effectively by private authority, almost completely insulated from democratic oversight or accountability.

Cada vez mais, as variadas e numerosas intervenções do Fed e de outros bancos centrais são realizadas para proteger apenas uma classe que opera no sistema internacional: credores, investidores e especuladores. Por exemplo, as injeções de liquidez do Federal Reserve — destinadas a apoiar os mercados de capitais privados — são realizadas no setor bancário paralelo, por meio de operações de mercado de recompra (onde, tal como nas casas de penhores, as garantias são temporariamente trocadas por dinheiro), e não através da prática consagrada de compras de ativos de mercado aberto em troca de liquidez.

Increasingly the varied and numerous interventions of both the Fed and other central banks are undertaken to protect just one class operating in the international system: creditors, investors and speculators. To take one jargon-heavy example, the liquidity injections of the Federal Reserve — aimed at supporting private capital markets — are actually undertaken in the shadow banking sector, through repo market operations (where, as in a pawnshop, collateral is temporarily swapped for cash) rather than through the time honoured practice of open market asset purchases in exchange for liquidity.

Em outras palavras, o Federal Reserve e outras operações do banco central fornecem agora segurança e proteção a uma classe global de rentistas, incluindo empresas de private equity (PE) que “aproveitam o sigilo para fleece investors (investidores que pagam muito acima do valor esperado ou justo em algo) e contribuintes“. Em vez de tomar empréstimos em nome próprio, as empresas de Private Equity aversas ao risco faziam certas companhias-alvo carregarem suas dívidas, e só depois, como “bancos paralelos”, começavam a emprestar dinheiro para cidadãos e empresas. Quando a pandemia de coronavírus enviou “os mercados de crédito a uma queda em março”, a empresa de PE Apollo, depois de evitar impostos, fez lobby com muito esforço e sucesso para ser socorrida pelo contribuinte. Quando a pandemia de coronavírus enviou “os mercados de crédito para a queda em março“, a firma de PE, Apollo, que sempre evitou impostos, fez um forte lobby e conseguiu ser socorrida pelos contribuintes. As fantásticas e inéditas intervenções do Fed em março de 2020, como Trevor Jackson argumenta, consistiram em “inundar os mercados financeiros com dinheiro o mais rápido possível, para que os bancos pudessem continuar emprestando, os compradores de ações pudessem continuar comprando e as instituições pudessem continuar pagando suas dívidas”. Longe de esvaziar a bolha da dívida global, o Federal Reserve mantém a dívida e seus proprietários flutuando.

In other words, the Federal Reserve and other central bank operations now provide security and protection to a global rentier class, including private equity (PE) firms that “harness secrecy to fleece investors and taxpayers.” Rather than borrowing in their own name, risk-averse PE firms loaded up target companies with debt, and then as ‘shadow banks’ began lending to US households and firms. When the coronavirus pandemic sent “credit markets into a tailspin in March”, the PE firm Apollo, having avoided taxes, then lobbied hard and successfully to be bailed out by the taxpayer. The Fed’s spectacular and unprecedented interventions in March, 2020 as Trevor Jackson argues, was “to flood financial markets with cash as quickly as possible, so banks could keep lending, buyers of stocks could keep buying, and institutions could keep making their debt payments” (Emphasis added).Far from deflating the global debt bubble, the Federal Reserve is keeping debt, and its owners, buoyant.

É por isso que, também, apesar de todo o seu poder, o Fed não consegue administrar uma economia global profundamente instável. Na realidade, ele pode até ter contribuído para o fracasso econômico. Como o FMI explica no Relatório Global de Estabilidade Financeira de 2020, o Fed preferiu fechar os olhos quando os mercados de crédito privado se expandiram rapidamente após a crise financeira global de 2007-2009, atingindo $ 9 trilhões de dólares em todo o mundo. Simultaneamente, a baixa regulamentação dos bancos centrais reduziu a qualidade do crédito dos mutuários e enfraqueceu os padrões de subscrição e a proteção dos investidores. Esses mercados de crédito arriscados — em títulos “lixo” de alto rendimento, empréstimos alavancados e dívida privada — continuaram a mostrar tensões até o início de abril, apesar da forte injeção de dinheiro do Fed.

It is also why, despite its awesome power, the Fed has not succeeded in managing a deeply unstable global economy. Indeed it may have contributed to economic failure. As the IMF explains in the 2020 Global Financial Stability Report, the Fed turned a blind eye as private credit markets expanded rapidly after the 2007-9 global financial crisis, reaching $9 trillion globally. Simultaneously weak regulation by central bankers lowered borrowers’ credit quality, and weakened underwriting standards and investor protections. These risky credit markets — in high yield (‘junk’) bonds, leveraged loans and private debt — continued to show stresses through early April, despite the Fed’s massive cash injection.

Então, com a ajuda dos credores internacionais, o Federal Reserve está sustentando firmas altamente endividadas, quando a economia real dá todas as indicações de uma espiral descendente para a deflação. Quem se beneficia de uma espiral deflacionária? Você adivinhou: a classe rentista. À medida que os preços e os salários caem, o valor da dívida aumenta, assim como o custo do serviço da dívida.

So, in the interests of international creditors, the Federal Reserve is propping up heavily over-indebted firms, when the real economy gives every indication of spiralling downwards into deflation. Who benefits from a deflationary spiral? You guessed it: the rentier class. As prices and wages fall, the value of debt rises, as does the cost of servicing debt.

Agora, a deflação assombra a economia global. Mesmo provocando queda de preços e lucros, e aumento do desemprego, enriquece os credores. Isso ocorre porque a deflação “envolve uma transferência de riqueza do resto da comunidade para a classe rentista”, como escreveu Keynes em seu Tratado sobre a Reforma Monetária, “assim como a inflação envolve o oposto…  supõe uma transferência de todos os tomadores de empréstimos, ou seja, dos comerciantes, fabricantes e agricultores, aos credores. Do ativo ao inativo.”

Deflation now haunts the global economy. Even while it triggers falling prices, profits and rising unemployment, it enriches creditors. That is because deflation “involves a transfer of wealth from the rest of the community to the rentier class,” as wrote Keynes in A Tract on Monetary Reform, “just as inflation involves the opposite… It involves a transference from all borrowers, that is to say from traders, manufacturers, and farmers to lenders. From the active to the inactive.”

Quais as consequências para o Sul Global?

What are the consequences for the Global South?

Como resultado das ações voláteis e instáveis dos investidores globais, os mercados emergentes tiveram a maior reversão de fluxo de portfólio já registrada, segundo o FMI. 100 bilhões de dólares em fugas de capital nas últimas semanas de março e início de abril de 2020 esmagaram as moedas dos países de baixa renda, enquanto aumentavam simultaneamente o valor do dólar. Como só o dólar americano é reconhecido pelos mercados internacionais para o pagamento de importações essenciais, sua força aumentou o custo das importações denominadas em dólares.

As a result of the fickle and volatile actions of global investors, emerging and frontier markets experienced the sharpest portfolio flow reversal on record, according to the IMF. $100 billion of capital outflows over the last few weeks of March and early April, 2020 crushed the currencies of low-income countries, while simultaneously inflating the dollar’s value. Because the US dollar alone is recognised by international markets for the payment of vital imports, its strength increased the cost of dollar-denominated imports.

Isso, por sua vez, levou a desequilíbrios nas contas comerciais e de capital, que levaram os fantasmas da economia global — as agências de classificação ocidentais — a rebaixar os países que foram vítimas de fuga de capitais. Os rebaixamentos, portanto, aumentaram os custos de empréstimos e também a disponibilidade de crédito, num momento em que os mercados globais de exportações de commodities para países pobres já estavam debilitados, reduzindo sua renda. Ao mesmo tempo, moedas enfraquecidas aumentaram o custo da compra de equipamentos vitais e farmacêuticos do exterior.

This in turn led to trade and capital account imbalances, which then prompted the ghouls of the global economy — western-based rating agencies — to downgrade countries that were victims of capital flight. Downgrades in turn raised borrowing costs and tightened credit availability at a time when global markets for poor country commodity exports were already weak, cutting their income. Simultaneously weakened currencies raised the cost of purchasing vital equipment and pharmaceuticals from abroad.

Os países empobrecidos foram efetivamente sacrificados na cruz do dólar.

Impoverished countries were effectively sacrificed on the cross of the US dollar.

Essa recente debandada do capital e seu impacto na vida e nos meios de subsistência de milhões de pessoas no Sul Global passaram despercebidos em círculos progressistas. Mas a fuga de capitais por mero capricho dos investidores, juntamente com o subsequente fortalecimento do dólar, não são conseqüências acidentais ou inevitáveis da pandemia.

That recent stampede of capital and its impact on the lives and livelihoods of millions of people in the Global South has gone largely unremarked in progressive circles. But capital flight on the mere whim of investors, coupled with the subsequent strengthening of the US dollar, are not accidental nor inevitable consequences of the pandemic.

Afinal, o vírus anuncia um maior fracasso econômico nos Estados Unidos do que em muitos mercados emergentes. Tampouco pode ser explicado diretamente por mudanças repentinas nas circunstâncias econômicas dos países atropelados pela pressa dos investidores em sair. Na verdade, trata-se de uma conseqüência do design do sistema internacional — uma arquitetura financeira global destinada a atender aos caprichos dos investidores, não importa quão irracionais eles sejam, e a proteger os interesses dos credores.

The virus, after all, portends greater economic failure in the United States than in many emerging markets. Nor can it be explained directly by sudden changes in the economic circumstances of the countries trampled down by investors’ rush for the exit. Instead, it is a consequence of the international system’s design— an international financial architecture purposed to accommodate the whims, no matter how irrational, of investors, and to protect the interests of creditors.

O FMI poderia ir ao resgate?

Can the IMF ride to the rescue?

Em todo o universo de comentários sobre “o que deveria ser feito” em relação à crise financeira internacional induzida pelo Covid-19, existe um consenso sobre a necessidade de o Fundo Monetário Internacional (FMI) assumir um papel maior. Em particular, muitos defendem que o FMI emita bilhões de dólares em Direitos de Saque Especiais, distribuindo-os aos bancos centrais de seus membros. Esses direitos de saque tornaram-se uma solução essencial para lidar com o problema da liquidez do dólar no contexto da atual pandemia.

Across the universe of commentary on ‘what is to be done’ about the international financial crisis induced by Covid-19, there is a near consensus on the need for the International Monetary Fund (IMF) to take a greater role. In particular, many advocate for the IMF to issue billions of dollars worth of Special Drawing Rights, distributing them to its members’ central banks. These SDRs, as they are known, have become a go-to solution to fixing the problem of dollar liquidity in the context of the present pandemic.

Mas, de uma perspectiva progressista, há desvantagens reais em legar esse grande poder ao FMI.

But from a progressive perspective, there are real downsides to bequeathing this great power on the IMF.

Primeiro, porque os países devedores não confiam na instituição, devido à sua conhecida e sustentada defesa dos interesses dos credores internacionais — soberanos e comerciais. O FMI atua como agente em nome dos credores e impõe condicionalidades de política a países cujo objetivo específico — embora muitas vezes disfarçado de ‘programas de estabilização’ — é gerar recursos para credores estrangeiros e garantir que estes últimos não tenham perdas em empréstimos feitos a governos soberanos.

First, the institution is not trusted by debtor nations because of its sustained defence of the interests of international creditors — both sovereign and commercial creditors. The IMF acts as agent on behalf of creditors and imposes policy conditionalities on countries whose specific purpose — while often disguised as ‘stabilisation programmes’ — is to generate resources for foreign creditors, and ensure the latter do not make losses on loans to sovereign governments.

Em segundo lugar, a questão dos direitos de saque do FMI são apenas outra maneira dos países de baixa renda adquirirem dólares da própria moeda hegemônica — através do FMI, e não do mercado aberto. Além disso, o poder de voto da hegemonia no FMI permite vetar qualquer proposta de alocação de direitos de saque especiais considerados hostis aos interesses dos EUA — conforme definido pelo presidente americano.

Second, the issue of SDRs by the IMF is simply another way for low-income countries to acquire dollars from the currency hegemon – via the IMF, not the open market.

Furthermore, the hegemon’s voting power at the IMF allows it to veto any proposals to allocate SDRs deemed inimical to US interests — as defined by the American President. 

Daí a decisão do governo Trump de vetar, “por enquanto”, o apaixonado apelo por uma maior alocação de direitos de saque, declarando que “não deseja dar à China e ao Irã acesso a reservas extras incondicionais”.

Hence the Trump administration’s decision to veto, “for now,” the impassioned plea by for an increased allocation of SDRs reportedly “because it does not want to give China and Iran access to unconditional extra reserves.”

Que mudanças são necessárias no sistema financeiro internacional?

What changes to the international financial system are needed?

Se quisermos vencer a batalha das ideias — se quisermos reverter a hiperglobalização e sua cruel preferência pelo rentismo por sobre os interesses das pessoas e do planeta –, então os progressistas precisam desenvolver um plano para desmantelar o sistema atual e construir uma nova arquitetura monetária internacional democrática, mais justa, e, finalmente, sustentável.

If we are to win the battle of ideas — if we are to reverse hyperglobalisation and its cruel preference for rentierism over the interests of people and planet — then progressives must develop a plan for dismantling the current system, and building a new, more just, democratic and ultimately sustainable international monetary architecture.

Isso começa desafiando a supremacia do dólar.

This begins with challenging dollar supremacy.

Um propósito que deve ser explorado é o da possibilidade de criar um sistema no qual todas as moedas possam ser usadas nas transações internacionais e domésticas, independentemente do tamanho das economias em que são emitidas. Como argumentou Jane D’Arista em 2003, “o ativo de reserva internacional (a moeda mundial) deve responder à necessidade de inclusão: seu valor deve ser baseado em uma cesta de moedas ponderada pelo comércio de todos os países membros”.

One objective that should be explored is the possibility of creating a system in which all currencies could be used in international as well as domestic transactions, regardless of the size of the economies in which they are issued. As Jane D’Arista argued in 2003, “the international reserve asset (the world currency) itself must respond to the need for inclusiveness: its value must be based on a trade-weighted basket of currencies of all member countries.”

No ápice de uma arquitetura monetária internacional progressiva, haverá um banco: uma instituição internacional que facilite as transações entre nações ou regiões de nações. Que poderia usar seus poderes para desencorajar países que acumulem ‘saques a descoberto’ — déficits em seu comércio — e disciplinar os países-membros que acumulem superávits maciços: porque o superávit de um país é o déficit de outro. Dessa forma, poderia ajudar a acabar com os atuais desequilíbrios globais, onde países como China e Alemanha têm grandes superávits comerciais, mas EUA, Espanha e Grã-Bretanha têm déficits insustentáveis. Tais desequilíbrios são política e economicamente desestabilizadores.

At the apex of a progressive international monetary architecture will be a bank: an international institution that facilitates transactions between nations or regions of nations. It could use its powers to discourage countries that build up ‘overdrafts’ — deficits in their trade, and discipline member countries that build up massive surpluses — because one country’s surplus is another’s deficit. By that means it could help to end the current global imbalances where countries like China and Germany have large trade surpluses, but the US, Spain and Britain have unsustainable deficits. Such imbalances are politically and economically destabilizing.

E ainda poderia fazer mais. Poderia deter os títulos (do governo) dos países-membros e usar esses ativos ou reservas para gerar liquidez adicional. Em outras palavras, ativos seguros de garantia soberana permitiriam ao banco fazer o que o Fed faz atualmente: gerar liquidez e desempenhar o papel de “credor de último recurso”.

But it could do more. It could hold the securities (government bonds) of member countries and use these assets or reserve holdings to generate additional liquidity. In other words, safe sovereign collateral assets would enable the bank to do what the Fed currently does, create liquidity and play the role of ‘lender of last resort’.

Sua supervisão e gestão democrática — não pela autoridade privada, mas pela autoridade pública — será fundamental para a saúde do sistema internacional. As finanças devem voltar a servir a economia global (europeia, ou de qualquer país), e não a dominá-la.

Fundamental to the health of the international system will be its democratic oversight and management — not by private authority, but by public authority. Finance must once again be made servant, not master of the global economy, the European economy or any national economy.

Essas ideias podem parecer utópicas, mas as figuras do establishment — prevendo a gravidade da conjuntura atual — mobilizam-se rapidamente para adotar ideias mais radicais. “Múltiplas moedas de reserva aumentariam a oferta de ativos seguros, aliviando as pressões descendentes da taxa de juros de equilíbrio global que um sistema assimétrico pode exercer”, disse recentemente o ex-diretor do Banco da Inglaterra, Mark Carney. “E com muitos países emitindo ativos seguros globais em concorrência entre si, o prêmio de segurança que eles recebem deve cair.”

These ideas may seem utopian, but establishment figures — sensing the gravity of the present juncture — are moving quickly to adopt more radical ideas. “Multiple reserve currencies would increase the supply of safe assets, alleviating the downward pressures on the global equilibrium interest rate that an asymmetric system can exert,” former Bank of England governor Mark Carney said recently. “And with many countries issuing global safe assets in competition with each other, the safety premium they receive should fall.”

Carney propõe uma alternativa: uma Moeda Hegemônica Sintética (“SHC”, na sigla em inglês) que seria fornecida pelo setor público, talvez por meio de uma rede de moedas digitais do Banco Central. “Uma SHC no Sistema Financeiro e Monetário Internacional (SFMI) poderia fornecer melhores resultados globais, dada a escala dos desafios do atual SFMI e os riscos que envolvem a transição para uma nova moeda de reserva hegemônica, como o Renminbi. Uma SHC poderia diminuir a influência dominante do dólar americano no comércio global. Se a parte do comércio faturado na SHC aumentasse, os choques nos EUA teriam repercussões menos potentes por meio das taxas de câmbio, e o comércio se tornaria menos sincronizado entre os países. Da mesma forma, o comércio global se tornaria mais sensível às mudanças das condições nos países de outras moedas do grupo que integra ou apoia a SHC.”

Carney proposes an alternative: a new Synthetic Hegemonic Currency (SHC) that would be best provided by the public sector, perhaps through a network of central bank digital currencies. “An SHC in the International Monetary and Financial System (IMFS) could support better global outcomes, given the scale of the challenges of the current IMFS and the risks in transition to a new hegemonic reserve currency like the Renminbi. An SHC could dampen the domineering influence of the US dollar on global trade. If the share of trade invoiced in SHC were to rise, shocks in the US would have less potent spillovers through exchange rates, and trade would become less synchronised across countries. By the same token, global trade would become more sensitive to changes in conditions in the countries of the other currencies in the basket backing the SHC.”

Seria difícil descrever Carney, que ganhou respeito na Goldman Sachs, como um progressista. Mas o fato de que ele está empurrando essas novas ideias só vai mostrar o quão longe os progressistas têm que caminhar para recuperar o sistema financeiro internacional como seu território de luta.

It would be hard to describe Carney, who earned his stripes at Goldman Sachs, as a progressive. But the fact that Carney is pushing these novel ideas only goes to show how far progressives must move to reclaim the international financial system as their own terrain of struggle.

A esquerda tem muito pouco a dizer sobre uma economia global agora governada efetivamente por tecnocratas não eleitos e misteriosos. Pelo contrário, alguns daqueles localizados no lado progressista do espectro político aplaudem o resgate feito por banqueiros centrais de credores de risco e muitas vezes imprudentes. Adam Tooze recentemente se entusiasmou com a criação, pelo Fed, de uma “rede gigante de salvação pública… estendida por todo o sistema financeiro”.

The left has very little to say about a world economy now governed effectively by unelected and unaccountable technocrats. On the contrary, some on the progressive end of the political spectrum applaud central bankers’ rescue of risky and often reckless creditors. Adam Tooze recently enthused that the Fed had created a “giant public safety net… stretched out across the financial system.”

Muitos outros comentaristas e economistas se uniram na adulação, o que lembra a este autor dos elogios nos anos 1990 e no começo dos 2000 recebidos pelo infalível “mestre” dos EUA e da economia global, Alan Greenspan.

Many other commentators and economists joined in the adulation, which reminds this author of the accolades of the 1990s and early 200s awarded to the infallible ‘maestro’ of the US and global economy, Alan Greenspan.

Esse entusiasmo por soluções tecnocratas e essencialmente antidemocráticas pode ser explicado em parte pela falência da economia. “A financialização é a razão menos estudada e mais explorada por trás de nossa inabilidade de criar uma prosperidade compartilhada”, argumenta Rana Foroohar em seu livro Makers and Takers (2016). E isso ajuda a explicar por que progressistas falham em entender a estrutura e o objetivo do sistema financeiro internacional e seus ganhos à classe rentista.

This enthusiasm for technocratic and essentially undemocratic solutions can be explained in part by the failure of economics. “Financialisation is the least studied and least explored reason behind our inability to create a shared prosperity,” Rana Foroohar argues in her book Makers and Takers (2016). And that helps explain why progressives fail to grasp the structure and purpose of the international financial system and its gains for the rentier class.

Isso também explica a admiração com que os tecnocratas de bancos centrais são agora vistos por muitos, e o foco míope nas questões domésticas da maior parte dos debates econômicos de esquerda. Sem falar na ausência de preocupação séria com as crises enfrentadas pelos países mais pobres.

It also explains the awe with which technocrats at central banks are now regarded by many, and the myopically domestic focus of most left-wing economic debate. Not to mention the absence of serious concern for the crises facing low-income countries.

Já é tempo de nos organizarmos para entender melhor, e transformar o sistema.

It is high time we organised to better understand, and to transform the system.

Conclusão

Conclusion

Transformar o sistema financeiro internacional é urgente, se quisermos que o mundo reverta os danos feitos tanto às sociedades quanto ao ecossistema pelo desenfreado sistema de “crescimento” econômico exponencial e acumulação de capital via rentismo financeiro.

Transformation of the international financial system is urgent if the world is to reverse the harm done to both human societies but also to the ecosystem by the current rampant system of exponential economic ‘growth’ and capital accumulation via financial rentierism.

O atual colapso do sistema capitalista internacional faz uma transformação bem dentro da faixa de “possibilidades radicais”. Mas não nos esqueçamos: a crise pode tanto ser resolvida pelo conflito — com a hegemonia usando seu todo-poderoso poder militar — ou pela transformação racional e progressista do sistema.

The current breakdown of the international capitalist system makes a transformation well within the range of ‘radical possibilities’. But let us not forget: the crisis can either be resolved by conflict — with the hegemon drawing on its almighty military power — or by reasoned and progressive transformation of the system.

As grandes questões que enfrentamos são essas: primeiro, por que os progressistas não estão na vanguarda desse debate? Em segundo, como expandir a educação pública e o entendimento do sistema e suas consequências? Em terceiro, como mobilizar apoio público para uma solução progressista à crise corrente?

The big questions we face are these: First, why are progressives not at the forefront of this debate? Second, how to expand public education and understanding of the system and its consequences? Third, how to mobilise public support behind a progressive solution to the current crises?

Talvez, essa Internacional Progressista, ao convocar ao diálogo global nessa conjuntura crítica, possa respondê-lo. Talvez, juntos possamos acabar com nossa dependência das “notas de dólar verde”, que, afinal de contas, são “um pedacinho de papel coberto de clorofila”.

Perhaps this Progressive International, by convening a global dialogue at this critical juncture, can answer them. Perhaps together we can end our dependence on “the greenback dollar bill,” which after all is “just a little piece of paper, coated with chlorophyll.”

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