por Jeniffer Mendonça
“Como a gente não vai se aglomerar se quando está no meio do tiroteio, no meio da guerra, a gente precisa aglomerar todo mundo no cômodo mais seguro da casa para poder se esconder e se proteger?”. O questionamento é da comunicadora e moradora do Complexo do Alemão Tiê Vasconcelos, 25 anos. Em plena pandemia, a comunidade da zona norte do Rio de Janeiro foi alvo de uma operação policial que deixou 13 mortos na sexta-feira (17/5).
A ação contou com presença da tropa mais letal do Rio, o Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais), e de policiais da Desarme (Delegacia Especializada em Armas, Munições e Explosivos). Para Tiê, foi a operação mais “pesada” na comunidade na pandemia por conta das mortes e do aparato policial. Embora tenham reduzido até o final de março por conta do novo coronavírus, as incursões policiais ainda são presentes. “Tinha caveirões circulando pelo morro o tempo inteiro, muita munição, muita granada”, descreve. “Mais uma vez a favela sangrando, mais uma vez mães gritando pela perda dos filhos”, lamenta.
A comunicadora conta que, com a falta de assistência do Estado, os próprios moradores precisaram se mobilizar para garantir que a população tivesse acesso a água, alimentação e higiene. “Quando [a pandemia] começou, muita gente, eu até, estava há mais de 20 dias sem água caindo na caixa d’água. Como adaptar esse método de prevenção para nossa realidade de favelado, sendo que a OMS (Organização Mundial da Saúde) recomenda lavar as mãos?”, questiona.
Com as operações, além de tentar se proteger dos tiros, os grupos ficam impossibilitados de entregar cestas básicas às famílias. “Enquanto a gente tá gritando, pedindo ajuda, pedindo doações, levando doações, fazendo um papel voluntário que deveria ser do governo e não nosso, essas ações [policiais] prejudicam a nossa tentativa de minimizar um pouco esse impacto do coronavírus”, critica Tiê. “Se pudesse ter revertido o valor que gastou [na operação] com cestas básicas nos ajudaria muito mais”.
Para a antropóloga da UFF (Universidade Federal Fluminense) Jacqueline Muniz, essas operações policiais favorecem a disputa de territórios, onde a falta de acesso a direitos básicos, como água e luz, propicia que grupos armados explorem o fornecimento desses serviços. “Estamos falando de uma economia política do crime. A pandemia está afetando o bolso do crime e não é à toa onde acontece isso: não vai acontecer em Botafogo, por exemplo, num bairro elitizado, que não está sob controle de nenhum domínio armado”, pontua.
De acordo com Jacqueline, por um lado, as milícias, que costumam cobrar taxas de moradores nas áreas onde atuam, viram sua arrecadação diminuir por conta do fechamento de estabelecimentos comerciais dessa população com as medidas de isolamento. Por outro, as facções criminosas, que inclusive têm feito ameaças a quem desrespeitar a quarentena, temem que a proliferação do vírus afaste compradores de suas mercadorias.
Um dos meios de conseguir dinheiro por esses grupos de policiais, segundo ela, é a cobrança de propina pela liberação de criminosos que venham a ser presos. “Muitos desses tiroteios servem para aumentar o preço do alvará do funcionamento das firmas. Outros servem para tirar o traficante de estimação e colocar o miliciano. Então, é preciso que a gente veja qual é o rendimento que isso tem e a quem interessa uma operação dessas sem planejamento, sem gestão, sem preservação de vidas”, analisa a professora.
Segundo o jornal Extra, um dos mortos era Leonardo Serpa de Jesus, o Léo Marrinha, tido como um dos líderes do tráfico nas comunidades Pavão-Pavãozinho e Cantagalo, na zona sul da cidade do Rio. Ele estava como “procurado” no site do Disque Denúncia, desde 2016, e era apontado como integrante da facção CV (Comando Vermelho). Outro que morreu na operação era Leandro Nascimento Furtado, o Diminho ou Oliver, indicado como chefe do tráfico em favelas do Alemão e também em uma do Complexo da Penha, o Parque Proletário.
No episódio 66 do PonteCast, o sociólogo José Cláudio Alves Souza explicou que as milícias e as facções dependem da estrutura das forças da segurança pública, a diferença é que os primeiros se elegem a cargos públicos e políticos. “É claro que vão ter acordos. Aqui no Rio de Janeiro, o TCP, Terceiro Comando Puro, é quem vai fazer negócio com milícia, alugar espaço para boca de fumo. E o CV é quem vai bater de frente”, declarou.
Jacqueline questiona o emprego dessas operações num contexto de pandemia quando as forças de segurança deveriam estar auxiliando as medidas de isolamento, inclusive preservando a vida de policiais. “O que estamos vendo é um barateamento da vida, não só do policial, como da população. E como esse policial é saído da periferia também, parece que há um desprezo à vida daqueles que moram nas comunidades populares, sejam eles policiais ou não”, prossegue. “O que vemos é um triplo risco: ou morre de Covid, ou morre no tiroteio ou morre porque perdeu o trabalho. Essa população fica com uma escolha impossível de morrer, morrer ou morrer”.
De acordo com ela, com o afastamento de cerca de 1300 policiais infectados ou com suspeita da doença, isso afeta a cobertura de policiamento de aproximadamente de 300 mil a 600 mil habitantes. “Uma coisa é a polícia do bem que está fazendo o policiamento que tem que fazer para apoiar a vigilância sanitária”, aponta. “Outra coisa é a polícia dos bens. Essa tem outros interesses e vê na pandemia uma janela de oportunidades para aferir lucro e aumentar a sua capacidade de dominação. E, evidentemente, a moeda para a ameaça é a violência, é a vida”, declara a antropóloga.
Para o pesquisador do Laboratório de Análise da Violência da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) Doriam Luis Borges de Melo, apesar do estado ter sido palco de outros massacres, como a Chacina do Pan, em 2007, em que uma operação da PM e a Força Nacional de Segurança resultou em 19 pessoas mortas e dezenas de outras feridas no Complexo do Alemão, a diferença é a legitimação institucional da letalidade policial por parte do governo, já que houve aumento de 92% de mortes em operações policiais do Rio em 2019.
“Por mais que a segurança pública sempre fosse de confronto, nunca se verbalizou essa ideia do extermínio”, explica. “O que já era legitimado ganha uma dimensão muito maior, como uma meta política, nesse governo Witzel e isso é muito perigoso se a gente ver ao longo desses 500 dias quantas pessoas foram mortas pela polícia”.
Favela carioca pedia alimento e calma, mas recebeu tiros que deixaram 13 mortos; para especialista, operações avulsas e pontuais são usadas por grupos da polícia para subir valor de propinas
Moradores juntaram os corpos de seis dos 13 mortos | Foto: Arquivo/Ponte |
“Como a gente não vai se aglomerar se quando está no meio do tiroteio, no meio da guerra, a gente precisa aglomerar todo mundo no cômodo mais seguro da casa para poder se esconder e se proteger?”. O questionamento é da comunicadora e moradora do Complexo do Alemão Tiê Vasconcelos, 25 anos. Em plena pandemia, a comunidade da zona norte do Rio de Janeiro foi alvo de uma operação policial que deixou 13 mortos na sexta-feira (17/5).
A ação contou com presença da tropa mais letal do Rio, o Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais), e de policiais da Desarme (Delegacia Especializada em Armas, Munições e Explosivos). Para Tiê, foi a operação mais “pesada” na comunidade na pandemia por conta das mortes e do aparato policial. Embora tenham reduzido até o final de março por conta do novo coronavírus, as incursões policiais ainda são presentes. “Tinha caveirões circulando pelo morro o tempo inteiro, muita munição, muita granada”, descreve. “Mais uma vez a favela sangrando, mais uma vez mães gritando pela perda dos filhos”, lamenta.
A comunicadora conta que, com a falta de assistência do Estado, os próprios moradores precisaram se mobilizar para garantir que a população tivesse acesso a água, alimentação e higiene. “Quando [a pandemia] começou, muita gente, eu até, estava há mais de 20 dias sem água caindo na caixa d’água. Como adaptar esse método de prevenção para nossa realidade de favelado, sendo que a OMS (Organização Mundial da Saúde) recomenda lavar as mãos?”, questiona.
Com as operações, além de tentar se proteger dos tiros, os grupos ficam impossibilitados de entregar cestas básicas às famílias. “Enquanto a gente tá gritando, pedindo ajuda, pedindo doações, levando doações, fazendo um papel voluntário que deveria ser do governo e não nosso, essas ações [policiais] prejudicam a nossa tentativa de minimizar um pouco esse impacto do coronavírus”, critica Tiê. “Se pudesse ter revertido o valor que gastou [na operação] com cestas básicas nos ajudaria muito mais”.
Para a antropóloga da UFF (Universidade Federal Fluminense) Jacqueline Muniz, essas operações policiais favorecem a disputa de territórios, onde a falta de acesso a direitos básicos, como água e luz, propicia que grupos armados explorem o fornecimento desses serviços. “Estamos falando de uma economia política do crime. A pandemia está afetando o bolso do crime e não é à toa onde acontece isso: não vai acontecer em Botafogo, por exemplo, num bairro elitizado, que não está sob controle de nenhum domínio armado”, pontua.
De acordo com Jacqueline, por um lado, as milícias, que costumam cobrar taxas de moradores nas áreas onde atuam, viram sua arrecadação diminuir por conta do fechamento de estabelecimentos comerciais dessa população com as medidas de isolamento. Por outro, as facções criminosas, que inclusive têm feito ameaças a quem desrespeitar a quarentena, temem que a proliferação do vírus afaste compradores de suas mercadorias.
Um dos meios de conseguir dinheiro por esses grupos de policiais, segundo ela, é a cobrança de propina pela liberação de criminosos que venham a ser presos. “Muitos desses tiroteios servem para aumentar o preço do alvará do funcionamento das firmas. Outros servem para tirar o traficante de estimação e colocar o miliciano. Então, é preciso que a gente veja qual é o rendimento que isso tem e a quem interessa uma operação dessas sem planejamento, sem gestão, sem preservação de vidas”, analisa a professora.
Segundo o jornal Extra, um dos mortos era Leonardo Serpa de Jesus, o Léo Marrinha, tido como um dos líderes do tráfico nas comunidades Pavão-Pavãozinho e Cantagalo, na zona sul da cidade do Rio. Ele estava como “procurado” no site do Disque Denúncia, desde 2016, e era apontado como integrante da facção CV (Comando Vermelho). Outro que morreu na operação era Leandro Nascimento Furtado, o Diminho ou Oliver, indicado como chefe do tráfico em favelas do Alemão e também em uma do Complexo da Penha, o Parque Proletário.
No episódio 66 do PonteCast, o sociólogo José Cláudio Alves Souza explicou que as milícias e as facções dependem da estrutura das forças da segurança pública, a diferença é que os primeiros se elegem a cargos públicos e políticos. “É claro que vão ter acordos. Aqui no Rio de Janeiro, o TCP, Terceiro Comando Puro, é quem vai fazer negócio com milícia, alugar espaço para boca de fumo. E o CV é quem vai bater de frente”, declarou.
Jacqueline questiona o emprego dessas operações num contexto de pandemia quando as forças de segurança deveriam estar auxiliando as medidas de isolamento, inclusive preservando a vida de policiais. “O que estamos vendo é um barateamento da vida, não só do policial, como da população. E como esse policial é saído da periferia também, parece que há um desprezo à vida daqueles que moram nas comunidades populares, sejam eles policiais ou não”, prossegue. “O que vemos é um triplo risco: ou morre de Covid, ou morre no tiroteio ou morre porque perdeu o trabalho. Essa população fica com uma escolha impossível de morrer, morrer ou morrer”.
De acordo com ela, com o afastamento de cerca de 1300 policiais infectados ou com suspeita da doença, isso afeta a cobertura de policiamento de aproximadamente de 300 mil a 600 mil habitantes. “Uma coisa é a polícia do bem que está fazendo o policiamento que tem que fazer para apoiar a vigilância sanitária”, aponta. “Outra coisa é a polícia dos bens. Essa tem outros interesses e vê na pandemia uma janela de oportunidades para aferir lucro e aumentar a sua capacidade de dominação. E, evidentemente, a moeda para a ameaça é a violência, é a vida”, declara a antropóloga.
Para o pesquisador do Laboratório de Análise da Violência da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) Doriam Luis Borges de Melo, apesar do estado ter sido palco de outros massacres, como a Chacina do Pan, em 2007, em que uma operação da PM e a Força Nacional de Segurança resultou em 19 pessoas mortas e dezenas de outras feridas no Complexo do Alemão, a diferença é a legitimação institucional da letalidade policial por parte do governo, já que houve aumento de 92% de mortes em operações policiais do Rio em 2019.
“Por mais que a segurança pública sempre fosse de confronto, nunca se verbalizou essa ideia do extermínio”, explica. “O que já era legitimado ganha uma dimensão muito maior, como uma meta política, nesse governo Witzel e isso é muito perigoso se a gente ver ao longo desses 500 dias quantas pessoas foram mortas pela polícia”.
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