Quem é o povo de Bolsonaro?

Resta saber os limites e a longevidade da estratégia neofascista diante do agravamento da crise econômica e social que se avizinha

Charge de Fredy Varela


Luisa Rauter Pereira, professora do Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto*
“Tenho certeza de uma coisa, nós temos o povo ao nosso lado, nós temos as Forças Armadas ao lado do povo, pela lei, pela ordem, pela democracia, e pela liberdade”, disse Jair Bolsonaro em frente ao Palácio do Planalto em Brasília nesse 5 de maio em mais uma participação num ato de inspiração neofascista organizado por seus apoiadores mais fanáticos. Em lives e twists, postadas obsessivamente, não apenas pelo presidente, mas também por seus ministros e filhos, vemos todo o tempo uma referência ao “povo”, uma entidade que daria sustentação ao seu governo. Mas que povo é esse de que fala Bolsonaro?

O povo nas sociedades liberal-democráticas apresenta um caráter plástico e genérico que torna o conceito passível de ser usado de maneira performativa na luta política. O povo e sua “vontade” são essencialmente abstrações que sustentam o poder político moderno, sendo a origem presumida de sua legitimidade. O governo Bolsonaro usa e abusa deste recurso, especialmente nos momentos em que se vê atacado, o que ocorre diuturnamente. Para compreender o que significa este “povo” que está invariavelmente ao lado de Bolsonaro contra seus “inimigos”, um caminho a trilhar é entender quem está excluído desta categoria no bolsonarismo.

Os inimigos do povo são as “elites”. Segundo o ministro da educação Abraham Weintraub, um dos membros mais aguerridos da seita, as elites são as “famílias poderosas (esquerdófilas corruptas e oligarcas) que criaram o atual regime, a ´Nova República”, segundo um recente tweets. Isso mesmo, para o bolsonarismo, a elite é a esquerda e as elites são de esquerda. As elites são os sindicatos e centrais sindicais. As elites são os professores universitários, artistas e intelectuais. As elites são a imprensa e os principais canais de TV. São as mal definidas “elites globalizadas”.

As elites são também os movimentos feministas e LGBT. Todos estes grupos seriam representados pelos partidos políticos que desde a redemocratização dominaram o espectro político brasileiro, desde o DEM até PSDB e o PT. Oligarcas esquerdistas! Todo o sistema liberal-democrático criado desde a redemocratização seria uma artificialidade elitista afastada do “verdadeiro povo”. Segundo as teorias da conspiração criadas pelas novas extremas-direitas, as Alt-Rights, que desde os anos 1980 tem se reorganizado globalmente com vistas à tomada do poder, as nações teriam sido tomadas desde a Segunda Grande Guerra por elites políticas e econômicas globais e que aderiram ao comunismo internacional para oprimir as nacionalidades em nome de uma ideologia e de interesses globais.
Neste processo, o verdadeiro povo dos países, com seus valores e modos de vida singulares e “puros” teriam sido tiranizados pelo projeto globalista das elites de esquerda. O verdadeiro povo seria formado pelo homem simples, cristão, conservador, heterossexual, casado, pai de família, provedor, empreendedor e patriota que por décadas tem sido oprimido pelas oligarquias da esquerda globalista. O verdadeiro povo é, portanto, homogêneo. Toda a diversidade de visões de mundo, de estilos de vida, de gênero e de religião seria fruto unicamente de uma falsificação estimulada ou imposta pelas elites.

É preciso que compreendamos que, embora toda essa construção seja um desvario absoluto, ela tem tido ressonância social suficiente para contribuir para a manutenção da base social do governo Bolsonaro. Ao fazer da política uma luta do verdadeiro “povo” contra as “elites”, o bolsonarismo tem sido capaz de produzir um simulacro dos reais conflitos, fornecendo respostas falsas a insatisfações reais da população brasileira. O Bolsonarismo desvia o foco dos nossos problemas fundamentais: nossa absurda e permanente desigualdade econômica e social, o domínio imperialista das elites financeiras sobre nossa economia, nossa subserviência a políticas econômicas neoliberais. O bolsonarismo direciona a forte e difusa indignação popular que vimos crescer desde Junho de 2013 no Brasil para problemas imaginários, criando uma espécie de imitação caricata de governo popular.

Temos um governo crítico das “elites globais” que mantem um Chicago boy implementando uma agenda ultraliberal e anti-povo no Ministério da Economia, considerada hoje ultrapassada até mesmo por muitos economistas liberais. Temos um governo do “povo simples”, mas defensor ferrenho do que há de mais selvagem em termos de exploração capitalista hoje no país.

O bolsonarismo tem sido capaz igualmente de captar e fornecer um discurso à insatisfação popular contra o sistema representativo liberal organizado em eleições, partidos, parlamento, separação dos poderes etc. A vontade do povo é o fundamento da política moderna, mas essa vontade é conhecida e posta em prática por meio de mecanismos institucionais complexos que muitas vezes parecem autônomos e artificiais. As pessoas, não raro, se veem apartadas das engrenagens do sistema político, visto cada vez mais como um mundo à parte, uma casta de privilegiados distantes dos problemas das pessoas comuns.

A “crise da representação”, de certa forma, faz parte da cultura política das democracias modernas desde seu surgimento, mas o fenômeno tem crescido nesta década em função da incapacidade dos governos de proteger suas populações das consequências do novo ciclo de crise capitalista que vivemos. Movimentos neofascistas têm encontrado, portanto, um campo fértil para implementar suas agendas. Entretanto, suas respostas ao problema mais uma vez mostram ser uma fraude: sua insistência em jogar fora todas as instituições para que a vontade do “povo” seja ouvida é mais um dos seus absurdos. Em vez de instituir formas de consulta popular e democracia direta, como conselhos populares, por exemplo, o governo Bolsonaro os destrói. Em vez de instituir e fortalecer os mecanismos constitucionais de consulta pública, o governo os aniquila. Aliás, uma das primeiras medidas do governo foi justamente o fim dos Conselhos Populares. Em vez de fortalecer e aperfeiçoar os mecanismos existentes de representação, Bolsonaro os ataca como política permanente de governo, causando caos na vida política nacional.

Para o neofascismo, ouvir a vontade do povo se confunde com um ato místico em que o líder supremo “ouve” seu povo imaginário. Mas como se dá essa audição? De um lado, Bolsonaro parece considerar a vontade do povo brasileiro os gritos dos fãs enlouquecidos que se aglomeram diariamente no “cercadinho” no Palácio da Alvorada à espera da próxima live. Ou ainda as manifestações pouco numerosas e representativas pedindo um novo AI-5. Auxiliado por seu filho, Carlos, o povo é intuído igualmente a partir da contagem de hashtags, likes, seguidores e compartilhamentos das redes sociais. Destes lugares, viriam os ecos da vontade popular capazes de garantir a permanência do mito em sua cadeira. O governo Bolsonaro acredita poder ouvir e representar o povo diretamente através dessas fontes voláteis e livre dos entraves do sistema político representativo corrompido pelos oligarcas de esquerda. Resta saber os limites e a longevidade de sua estratégia neofascista digital diante do agravamento da crise econômica e social sem precedentes que se avizinha.

(*) Autora do Livro O Povo na História do Brasil. Linguagem e Historicidade no Debate Político (1750-1870). Jundiaí: Paco Editorial, 2016




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