Lula sabe o que faz | Rodrigo Perez

Lula leu perfeitamente o cenário. Entendeu que não dá mais ser conciliador, que não dá para ser estadista. Voltou, então, às origens, menos por convicção ideológica e mais por estratégia de sobrevivência


Reprodução/Facebook
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Por Rodrigo Perez Oliveira  

Depois de alguns meses discreto, caladão, o ex-Presidente Lula voltou a ser destaque na crônica política. Primeiro, por uma canelada retórica. Depois, por um lance político genial.

A canelada retórica nem pede muito papel e tinta. No dia 20 de maio, em entrevista à carta capital, Lula disse que se há algum aspecto positivo na pandemia é a reabilitação do Estado como instância de planejamento de efetivação de políticas públicas. A fala de Lula foi pouco cuidadosa, se prestando facilmente às manipulações que desonestamente tentaram fazer parecer que o ex-Presidente festejava os efeitos da pandemia. A mídia hegemônica explorou o factóide para reforçar a narrativa de que Bolsonaro e Lula são opostos simétricos entre si. A avalanche de ódio foi assustadora e confirma aquilo que já tinha ficado claro nas eleições de 2016 e 2018: o antipetismo é a potência política mais poderosa no Brasil dos nossos tempos.

No dia 30 de maio, veio a público um “manifesto em defesa da democracia” que repudia os constantes e progressivos ataques do governo de Jair Bolsonaro aos outros poderes da República. O texto foi assinado por um amplo leque de lideranças, indo da “direita democrática” à esquerda socialista, passando, inclusive, por ex-aliados de Bolsonaro. Lula se recusou a assinar.

A recusa de Lula agitou o debate político nacional. Como sempre acontece, o ex-Presidente foi defendido por sua base orgânica e atacado por todo o resto, acusado de hegemonista por uns, de irresponsável e traidor por outros. Alguns chegaram a dizer que o trauma da prisão arbitrária, das mortes da companheira de vida, do irmão e do neto impedem Lula de cerrar fileiras com aqueles que colaboraram para a perseguição jurídica e midiática que resultou em sua prisão. Houve até quem achasse que a idade estava comprometendo sua lucidez. Poucos entenderam por que Lula não quis assinar o manifesto.

Um homem comum jamais se juntaria a seus algozes de véspera, aos algozes de sua companheira, de seu neto, de seus filhos. Lula não é homem comum. Lula é uma instituição. Não, definitivamente, não foi o trauma, não foi o ressentimento que impediram Lula de assinar o manifesto. Também não foi a senilidade. Lula está no melhor de sua forma política.

Lula não assinou porque entendeu perfeitamente o que está acontecendo e o papel que desempenhará a partir de agora.

Lula sabe que o antipetismo levou o PT a uma posição paradoxal: piso alto e teto baixo. O PT conta com pelo menos 25% de apoio popular leal. Parte pra qualquer eleição desse ponto, o que não é pouca coisa. Mas a coalização lavajatista pôs em marcha a mais violenta máquina de destruição de reputações que já vimos funcionando aqui no Brasil e fez o teto do petismo despencar.

No segundo turno das eleições presidenciais de 2018, Fernando Haddad teve 45% dos votos. Muita gente, muita gente mesmo, votou no PT com o nariz tampado, fazendo ânsia de vômito. Metade do capital eleitoral de Haddad em 2018 se deve ao veto a Bolsonaro. Essas pessoas só votam no PT de novo se estiverem diante de outro apocalipse. Farão tudo para não passar por isso outra vez.

A militância petista esbraveja, xinga, quando alguém diz verdade tão óbvia. Lula conhece perfeitamente essa verdade tão óbvia. Lula é perito na arte da política. A militância, seja ela qual for, quase sempre se comporta como torcida de arquibancada.

Lula sabe perfeitamente que o PT não conseguirá liderar um projeto nacional no médio prazo. Sabe que a reabilitação virá com o tempo, muito tempo, e que ele mesmo não verá sua reputação ser reparada.

O Lula que subiu o rampa do Palácio do Planalto em janeiro de 2003 era bem diferente do Lula que apareceu como liderança sindical lá no ABC Paulista, no final da década de 1970. Não era mais o sindicalista maltrapilho, de barba desgrenhada, grevista, que desagradava ricos e pobres. Pois sim, leitor e leitora, pobre não gosta de greve, não gosta de instabilidade. O povão não votava no jovem Lula.

Lula aprendeu, se reinventou. Deixou de ser militante para se tornar Estadista. Escreveu uma carta de conciliação destinada ao povo brasileiro. Prometeu respeitar contratos e propriedade. Não foi uma carta só para os ricos. Não apenas os ricos gostam da propriedade e estabilidade. Os pobres gostam também. Propriedade pouca é ainda mais valiosa.

O pobre revolucionário é um delírio que só existe na cabeça de uma esquerda bacharelesca que torce a realidade para fazer caber no próprio desejo. Pobre é conservador, e tá certíssimo. Já vive no fio da navalha. Se o mundo chacoalha demais as coisas podem piorar. Pobre sabe que as coisas sempre podem piorar

Lula acenou, então, para pobres e ricos. Montou uma grande coalizão onde pobres e ricos ganharam, cada um dentro de seus horizontes de expectativas. Lula colocou Meirelles na presidência do Banco Central para afagar o mercado financeiro. Fez aliança com o PMDB para conseguir governar em paz. Não incomodou aos ricos, mas fez o possível para melhorar a vida dos mais pobres, como bem definiu Marcelo Odebrecht. Poucos definiram tão bem o Lula estadista.

Lula fez aliança com a Globo, nunca mexeu nos direitos de transmissão. Teve até filme em sua homenagem, com Glória Pires interpretando Dona Euridice.

Lula se tornou estadista quando conseguiu furar a bolha do petismo raiz, se tornou amado por brasileiros que não são filiados a partido político, que não militam em movimento social. Gente que só quer viver da melhor forma possível.

A destruição do sistema político não permite mais que Lula performe o conciliador. Há uma parcela considerável da população que não quer ouvir falar no nome de Lula, que não quer vê-lo nem banhado de ouro com salpicos de nutella.

Ao ouvir isso, ao ler isso, o militante petista xinga, esbraveja. Lula sabe perfeitamente que é verdade. O militante é torcedor. Lula é perito na arte da política.

Qual o papel que a história reservou para o último Lula? O do ancião que morrerá no ostracismo? Não, de forma alguma. Lula é uma instituição.

Sobrou para Lula a radicalização à esquerda e a fidelização de sua base social orgânica. Sobrou para Lula ser dono de 25% do Brasil. 1/4 do latifúndio. Não dá pra vencer eleição, mas não é pouca coisa, não. É o bastante para continuar elegendo a maior bancada do Congresso Nacional. É o bastante pra eleger uma boa meia dúzia de governadores de Estado. Dezenas de prefeitos. Centenas de vereadores. É mais que o suficiente para continuar sendo protagonista relevante no xadrez da política nacional.

Lula leu perfeitamente o cenário. Entendeu que não dá mais ser conciliador, que não dá para ser estadista. Voltou, então, às origens, menos por convicção ideológica e mais por estratégia de sobrevivência. Por isso, não assinou o manifesto.

Por que tentar conciliar com quem não quer conciliar? Melhor mesmo é arregimentar a tropa.

Assim, em um governo de centro-esquerda comandado por outra liderança, o PT será aliado indispensável, vai governar junto. Em um governo de direita, liderará a oposição. De todo modo, o PT vence a vitória possível. Lula é inteligente o suficiente para saber que na política só se ganha vitória possíveis. Lula é perito na arte da política. A política é a arte do possível.

Lula sabe o que faz. A gente que demora um pouco para entender.


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