O bolsonarismo faz do Estado brasileiro um puxadinho da própria casa

O patrimonialismo, o autoritarismo e a repulsa à democracia não têm nada de novo

Do Justificando

Por Marcos Vinícius Gontijo

Durante o período de entreguerras (1918-1940), há pouco mais de um século, assistiu-se à gradual crise do liberalismo, a qual envolvia à crise econômica de 1929, mas, fundamentalmente, à ascensão do fascismo nos países europeus e do nazismo alemão, com a nomeação de Adolf Hitler a chanceler do Reichtag em 1933, pelo então presidente conservador Paul von Hindenburg. Enquanto isso, no Brasil, testemunhou-se o fim da Primeira República (1889-1930), originado pelo conflito entre as elites políticas do período em torno das eleições presidenciais, que fomentara, em seguida, o golpe civil-militar, conhecido por Revolução de 1930, dando início a ainda chamada Era Vargas (1930-1945), período este contraditório na história brasileira.

Durante o governo Vargas, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) foi responsável pela propaganda governamental, a qual era difundida até mesmo via livros didáticos[1], e que possuía semelhança direta com aquela produzida na Alemanha nazista pelo ministro da propaganda, Joseph Goebbels (1897-1945). Outra de suas funções era o controle e censura dos meios de comunicação e da produção artística.

Além disso, o varguismo se nutria do personalismo baseado no culto à imagem de Getúlio Vargas, aos modos da figura do Füher, da aproximação com as classes trabalhadoras e do intermédio das relações trabalhistas a partir da tônica do progresso, repleto de sentimentos nacionalistas e da exacerbação dos símbolos pátrios. Em 1937, um burburinho, que permite analogias ao incêndio do Reichtag em fevereiro de 1933, circulava sobre um suposto plano comunista de tomada do poder — uma espécie de parente distante das atuais fake News. A dita existência do intitulado Plano Cohen permitira que Getúlio Vargas decretasse estado de sítio em defesa da lei e da ordem, com o consequente fechamento do Congresso. A ação comunista nunca viera as vias de fato, pois se baseava em um documento fraudulento, como viera a se saber depois, forjado pelo capitão do exército Olímpio Mourão Filho. Em seguida, instaurou-se o chamado Estado Novo, nome que buscava aparentar a ruptura com a chamada “República Velha”, logo, com a “velha política”.

Entre os anos de 1937 e 1945, o Brasil fora governado por um Estado autoritário, no seio do qual intelectuais, jornalistas e figuras públicas foram perseguidos e aprisionados, ao mesmo tempo em que a sociedade era gerida pelas vias da negação e da negligência das diferenças e contradições que continha em si mesma. Essa é uma característica comum dentre os regimes fascistas e totalitários, os quais procuravam, de acordo com a historiadora Maria Helena R. Capelato, “impedir a expressão de conflitos e manifestações autônomas com sentido de oposição, [negando] o princípio da pluralidade da vida social, característica das experiências democráticas, substituindo-o pela proposta de construção de uma sociedade unida e harmônica”.[2]

É nesse contexto que fora publicado pela primeira vez o ensaio que ao lado de Casa-grande & senzala (1933), de Gilberto Freyre, e Formação do Brasil contemporâneo (1942), de Caio Prado Jr., que compôs a tríade fundamental da historiografia brasileira — sejam feitas as críticas, por favor. Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda, em 1936, procurava por saídas diante da fragilização das instituições democráticas e do retraimento do liberalismo no país. Desse modo, uma das respostas sugeridas pelo ensaio é como a formação da sociedade brasileira, desde a colônia, esteve acompanhada do desenvolvimento e enraizamento das projeções das relações familiares, isto é, da esfera privada, sobre as relações formais, legais, burocráticas, atingindo, por fim, a própria individualidade, ou seja, aquelas peculiares à esfera pública. Cunhou-se, portanto, o conceito a partir do termo, apropriado do escritor Ribeiro Couto, de “homem cordial”. Este que é, equivocadamente, interpretado e restringido pelo senso comum à hospitalidade, bonança, carisma e festividade do caráter brasileiro. Entretanto, o significado dessa cordialidade vai além, sendo mais crítico do que lisonjeiro.

A definição etimológica de cordial, segundo o dicionário Houaiss, deriva do latim cordialis, isto é, aquilo que é relativo ao coração. Em Raízes do Brasil, no entanto, o termo ultrapassa a intimidade sentimental do sujeito cordial, pois demonstra como tal cordialidade produz certa adversidade para com as relações formais, típicas do mundo do trabalho e da esfera pública. O homem cordial, portanto, é aquele que é resistente às características do individualismo e da imparcialidade das instituições e das relações externas à família. Sérgio Buarque vai direto ao ponto, logo no início do novo capítulo: “O Estado não é uma ampliação do círculo familiar e, ainda menos, uma integração de certos argumentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo. Não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade e até uma oposição.”[3] Como que para suprir a distância necessária à dinâmica pública, a cordialidade estenderia as relações familiares de modo a gerir aquilo que lhe é externo ao seu favor. O chamado “jeitinho brasileiro” é produto dessa marca cultural, bem como o é, por lógica, a corrupção. O patrão que trata o empregado como um membro da família e o empregado que age como se o patrão lhe fizesse um favor ao empregá-lo; o infrator, pego alcoolizado no volante, que procura se aproximar do policial à procura de um sentimento de camaradagem fraternal; ou uma figura política que compreende que o cargo público lhe confere o direito de ceder espaços aos familiares no interior de instituições públicas ou a direção da Política Federal aos amigos, são características que demonstram essa confusão entre o público e o privado.

Esse equívoco ainda faz parte da nossa realidade. Getúlio Vargas, ao modo do que havia de mais moderno na comunicação do período, imprimia seu rosto no papel-moeda, aparecia em fotografias abraçando e beijando crianças, entrava nas casas através do rádio. Fomentava na população um sentimento de proximidade e de um comprometimento paternal com o povo, como se este fosse um só. Quase um século depois, assistimos a lives, cada um de seu aparelho, como telespectadores que adentram em um pequeno espaço da intimidade daqueles que transmitem. Algumas figuras, como a do atual presidente aparece de chinelo, roupas esportivas e até mesmo sentado diante de uma mesa caótica após um confortável café da tarde em família.

Essas imagens que circulam pelos nossos aparelhos veiculam uma mensagem, podem parecer espontâneas pelo fato da figura maior do Poder Executivo aparecer com a barriguinha de fora e uma quase corriqueira coronha de pistola sobressaindo pela cintura do calção, porém não o são. Produzem um efeito de espontaneidade procurando demonstrar que Bolsonaro não age “para inglês ver”, tudo ali é verdadeiro, é isso que ele é, não faz politicagem, ou melhor, representa a negação da “velha política”. Para comprovar essas afirmações, desrespeita as regras gramaticais, apela para a deselegância, desacata autoridades públicas e falta com o decoro parlamentar. Afinal, ele só está falando o que pensa e sendo o que ele é, desvirtuando a definição básica de ética e liberdade de expressão: não se pode ser livre aquele que vai de encontro com a liberdade e o bem-estar de terceiros. Como na década de 1930, salvo as diferenças históricas, claramente, Bolsonaro chama para si mesmo a novidade ao romper com algo que, supostamente, era antigo. Contudo não há nada de novo “nisso daí”, pelo contrário, Bolsonaro e outras figuras obscuras da política brasileira atual apelam para as reminiscências e resquícios do que há de mais arcaico em nossa sociedade e na trágica história do século XX.

Outra característica das imagens do ambiente familiar bolsonarista é relativa aos sujeitos que nelas aparecem, quando há alguém além de Bolsonaro. Em geral, no centro da imagem aparece o pai e, em seu redor, os filhos. Observa-se aí não só a família, mas a lógica patriarcal que a sustenta. Esta carrega e defende, ao mesmo tempo, uma perspectiva educacional e, por isso, didática. Os filhos são educados em prol da família, para a ela servirem, e não para o convívio social. É gerida, sobretudo, pela obediência cega e acrítica: a figura paterna tudo sabe e tudo pode. Não espanta que um dos projetos bolsonaristas seja a educação domiciliar. Os filhos devem ser uma progressão da família e não de indivíduos distintos e autônomos em relação aos pais. O historiador brasileiro afirmava, nesse sentido, que nos lugares onde esse tipo de formação predomina, sobretudo se patriarcal, a transformação social “tende a ser precária e a lutar contra fortes restrições à formação e evolução da sociedade segundo conceitos atuais”[4]. Isto é, o conservador é aquele que nega as transformações históricas sob a ilusão de manutenção de costumes inertes ligados, em especial, à família, que, na verdade, já se alteraram, embora sejam utilizados para legitimar ações e perspectivas autoritárias no presente.

A família Bolsonaro e seus aguerridos e inacreditáveis 30% — os quais eu não gostaria de inocentar sob a pecha de ruminantes — se comportam, sem dúvida, como se a praça dos Três Poderes fosse o quintal familiar, o qual aos domingos é preenchido pelos entes queridos em torno de uma abastada churrasqueira. Quando esse espaço é ocupado por ideias, posicionamentos e corpos distintos, como a manifestação dos profissionais da saúde, ficam ouriçados, agressivos e se comportam como se o espaço público fosse como aquelas “pessoas da sala de jantar”. Enquanto a enfermeira e os jornalistas são perseguidos e humilhados, o presidente estaciona o jet-ski ao lado de uma lancha, todo bonachão, para trocar um dedo de prosa e tecer comentários irresponsáveis e canalhas sobre a vida pública atual do país que ele supostamente deveria governar. Pode ser que até governe, mas governa para os seus, ninguém mais. Esta cena, em particular, é sintomática acerca dessa suposta civilidade da classe média, a qual a filósofa Marilena Chaui tão bem analisa e critica, o bonacheirão presidencial desfrutando da tranquilidade do passeio em um jet-ski estaciona, amigavelmente, para conversar com os eleitores, ao passo que o policial, sentado em sua garupa, representa o medo, a violência, a canalhice e o caráter fascista de Bolsonaro e de seus eleitores. Uma sensação traduz o cenário: o mal-estar causado pelo absurdo. O mesmo sentimento produzido pela fala de Regina Duarte, para quem a morte e a dor alheias são apenas incômodas pela “morbidez”, um incômodo que atrapalha seu mundinho ensolarado e patético. Uma completa banalização do horror, de um cheiro tenebroso de fascismo.
Enfim, esse texto não tem a presunção de resumir esse show de horrores chamado bolsonarismo, no qual, infelizmente, vivemos — contra o qual, em contrapartida, felizmente podemos lutar. Pretende, talvez, salientar as características estruturais que persistem em nossa sociedade, não obstante a peculiaridade histórica desse período. O patrimonialismo, o autoritarismo e a repulsa à democracia não têm nada de novo, assim como não tem o desejo de fazer do Estado brasileiro um puxadinho da própria casa, como o faz a família Bolsonaro e seu séquito.


Marcos Vinícius Gontijo é pesquisador e historiador, mestre em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e doutorando em História e Culturas Politicas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)


GGN

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